10 de agosto de 2014

[DDI] Carteado


Sofia tinha as cartas na mão; contudo, apesar de não entender muito bem as regras, foi obrigada a jogar. Observava fixamente sua adversária; esta nem lhe dirigia um olhar, não levantava os olhos do montante de cartas que segurava - sabia o que estava fazendo e conhecia o jogo.
Confusa, Sofia analisava sua sequência: faltavam poucas cartas para completá-la, porém ela tinha um grande número de manilhas sobressalentes e não sabia o que fazer com elas. Na verdade, frequentemente se sentia assim, focada em poucos aspectos não conseguia lidar com o restante, sempre os mesmos sonhos, os mesmos caminhos, os mesmos planos, nunca olhava para o lado, não percebia o que estava ao seu redor. É, podia não entender esse carteado em que se encontrava, não saber como foi parar nessa rodada ou desconhecer as regras, mas percebeu que já o jogava há muito tempo. 
A adversária descartava seu excedente e nada de virem os números que Sofia precisava. Começou a desconfiar que sua rival descobrira sua jogada ou que o azar escondera o que lhe era preciso no fim do grande monte de cartas ainda a serem escolhidas. 
O jogo prosseguia e Sofia permanecia focada em sua sequência inicial. Teve chances de começar algo novo, mudar de estratégia, mas não quis; continuava fixa naquelas duas cartas que lhe faltavam. Sua adversária era implacável e silenciosa, pegava algumas cartas, eliminava outras mas não levantava os olhos para vê-la, como se ela não existisse, como se fosse apenas uma figurante nessa disputa; e Sofia percebeu que era verdade, apesar de ser um jogo apenas de duas, ela não era importante, não fazia diferença – e entendeu que também já estava acostumada com essa sensação, era assim que se sentia em grande parte dos seus dias. 
De repente, a outra levantou os olhos pela primeira vez e sorriu, mostrou toda sua sequência completa e, por fim, descartou, como lixo, as duas cartas que faltavam para Sofia finalizar sua jogada, completar seus planos e realizar seus sonhos. Ali, naquele monte de sobras e restos, aquelas primorosas cartas não tinham mais valor, agora elas eram nada. 
Sofia perdeu mais uma vez para aquela rival tão conhecida, aquela que a reduzia e que lhe mostrava a verdade - Sofia perdeu para a Vida.

Daniele Vintecinco



DDI – Delírios, Devaneios e Insensatez - um espaço em que escrevo todos os pensamentos, delírios e devaneios que vêm a minha cabeça, o que é no mínimo uma insensatez.